Alzheimer: Novas informações sobre uma antiga doença
Resumo
Descrita pela primeira vez há mais de cem anos, a Doença de Alzheimer (DA) caracteriza-se pela presença de placas amiloides e emaranhados neurofibrilares (ENFs), alterações patológicas e histológicas que ainda definem a doença e constituem o foco das pesquisas atuais. A correlação entre essas anomalias cerebrais pode ser estabelecida com base em biomarcadores, exames de imagem e testes cognitivos. Ainda que não seja necessariamente um estado patológico, o comprometimento cognitivo leve (CCL) pode representar uma etapa relevante do desenvolvimento da demência. Durante o período prodrômico, antes do declínio clinicamente detectável da cognição, são possíveis intervenções em diversos níveis. As futuras terapias visam à redução do acúmulo de proteínas tóxicas no cérebro e à prevenção do declínio da função cognitiva.
Em vista do ritmo de envelhecimento da população em todo o globo, há uma grande possibilidade de que essa doença complexa e heterogênea venha a ser a próxima epidemia mundial. Para o setor de seguros, tanto a DA quanto o CCL representam grandes desafios. O conhecimento dos fatores de progressão permite a estratificação dos riscos, e a compreensão plena das possíveis tendências futuras no tocante à epidemia e aos tratamentos deverá servir, para as seguradoras, como base da modelagem atuarial e da planificação do desenvolvimento de produtos.
Introdução
A Doença de Alzheimer (DA) já foi descrita há mais de um século, no entanto, devido a sua complexidade e heterogeneidade, ainda há dificuldades em seu diagnóstico precoce e tratamento, assim como incertezas com relação a sua patogênese. Serão abordados, no presente artigo, a visão da doença propiciada pelas pesquisas – em particular a interação entre as proteínas β-amiloide, tau fosforilada e a doença dos pequenos vasos cerebrais –; biomarcadores, técnicas de imagem que auxiliam no diagnóstico de demência; a definição de CCL; e os fatores de risco da DA. Também se discutirão áreas para a eventual modificação da doença por meio de medicamentos.
O envelhecimento da população em todo o mundo pode levar a uma epidemia de demência.
Segundo os epidemiologistas, a DA, o tipo mais comum de demência, deverá ser a “epidemia do século XXI”. No caso dos indivíduos assintomáticos, o risco de desenvolvê-la aos 65 anos é de 10.5%1. Em todo o planeta, o crescimento populacional dá-se de tal maneira que a coorte com maior propensão para o desenvolvimento da doença também será, nos próximos 30 anos, o segmento em expansão mais acelerada. De acordo com as previsões do U.S. Census Bureau [Agência do Censo dos EUA], 88 milhões de americanos terão mais de 65 anos em 2050. Em nível mundial, essa faixa etária deverá atingir 1,6 bilhão de pessoas no mesmo ano. Além disso, prevê-se que, na Ásia e na América do Sul, o grupo acima dos 80 anos quadruplicará no mesmo período2.
A longa fase pré-clínica da da
Em 1906, o Dr. Alois Alzheimer descreveu os sintomas clínicos de uma mulher com demência pré-senil, assim como, por meio de uma autópsia, as alterações histológicas cerebrais da paciente, que ainda são os critérios clínicos definidores da DA e o foco da pesquisa sobre a enfermidade3: placas amiloides e emaranhados neurofibrilares.
Há 30 anos4, identificou-se a proteína específica formadora daquelas estruturas, a qual resulta da clivagem da proteína precursora amiloide (PPA), que se liga à membrana celular por razões ainda não totalmente esclarecidas. Após a quebra da PPA em fragmentos independentes por secretases, a molécula da proteína β-amiloide é cortada em ambas as extremidades e, uma vez liberada para fora do neurônio, começa a agregar-se a outras partículas semelhantes, constituindo assim oligômeros, que se crê sejam os principais componentes das referidas placas. A eles e aos conglomerados mal-enovelados, vão-se adicionando, de maneira gradual, outras proteínas que formam placas insolúveis4. Cabe ressaltar que o acúmulo de placas amiloides pode preceder os sintomas clínicos em até 20 anos5.
Os emaranhados neurofibrilares compostos de proteína tau, a segunda característica histológica da DA, fazem parte da rede microtubular dos neurônios. A garantia da estabilidade estrutural dos axônios e o transporte, do corpo celular neuronal a eles, de nutrientes e vesículas de neurotransmissores são as funções dessa proteína4. O distúrbio dessa rede microtubular dá início a um processo destrutivo caracterizado pelo acúmulo de tau hiperfosforilada e pela agregação de fibrilas de tau, que acabarão por formar, dentro da célula, emaranhados que levarão à disfunção das sinapses, a qual, juntamente com a perda delas, é o resultado mais associado ao declínio cognitivo dos portadores de demência6. De fato, esse decaimento progressivo é o principal sintoma desse estágio da doença, estando intimamente relacionado a um diagnóstico clínico da evolução de CCL para demência7.
O diagnóstico do ccl
Em 2011, o National Institute on Aging [Instituto Nacional do Envelhecimento] e a Alzheimer’s Association [Associação de Alzheimer], ambos dos EUA, criaram um grupo de trabalho com a finalidade de revisar os parâmetros diagnósticos do CCL resultante da DA. Para tanto, examinaram-se os critérios clínicos, cognitivos e funcionais com vista a conferir maior precisão ao processo, assim como a avaliar o risco do eventual desenvolvimento da enfermidade. A identificação dos pontos de transição entre as fases assintomática e sintomática foi facilitada pelo emprego, em combinação com os critérios clínicos do CCL, de ferramentas de triagem cognitiva, biomarcadores e estudos de imagem.
A detecção precoce do estado de pré-demência é importante tanto para a intervenção terapêutica quanto para o estabelecimento de referências para a progressão da doença8. Caracterizado por alterações da cognição observadas seja pelo paciente, seja por outras fontes confiáveis, o CCL é diagnosticado com base em um declínio mensurável dessa função em um ou mais domínios a ela relacionados, o mais importante sendo a perda de memória uma vez que a debilitação da episódica está associada ao risco de progressão para DA8.
A avaliação cognitiva é fundamental para o diagnóstico do CCL. Os testes de aprendizado de listas de palavras, de Memória Lógica I, II; a Escala de Memória de Wechsler; os subtestes Reprodução Visual da Escala de Memória de Wechsler I e II são alguns dos meios empregados na detecção de déficits da capacidade de aquisição e retenção de novas informações, assim como de redução da memória episódica. Também é importante fazer avaliações adicionais de todos os domínios cognitivos já que nem todos os portadores de CCL apresentam redução da memória episódica8. Em geral, o desvio-padrão da pontuação desses pacientes é de 1 a 1,5 abaixo da de pessoas da mesma faixa etária e nível de escolaridade8. Para completar o diagnóstico de CCL, também é fundamental a investigação de outras causas do problema (inclusive eventuais fatores vasculares, traumáticos e toxicológicos), as quais devem ser avaliadas para definir a probabilidade de alguma doença neurodegenerativa com características compatíveis com a DA.
Uso de biomarcadores na avaliação do risco de progressão do ccl
A demência pode ter um estágio prodrômico muito prolongado durante o qual não se registram alterações cognitivas. Segundo a hipótese dos pesquisadores, durante o período assintomático da DA, ocorre uma deposição de amiloide no cérebro5 de forma que a detecção precoce desse processo, no início do período prodrômico, pode viabilizar futuras intervenções terapêuticas, bem como, no tocante aos produtos de seguro, possibilitar a diferenciação dos riscos.
À medida que evolui o CCL, as alterações patológicas do cérebro caracterizam-se por depósitos de proteína tau, concomitante perda da função sináptica e degeneração dos neurônios com grandes quantidades de ENFs5. Com o passar do tempo, a perda da integridade neuronal leva a um declínio cognitivo gradual.
Entre os principais resultados indicativos da progressão da DA, incluem-se: predomínio, em testes de avaliação cognitiva, do comprometimento da memória amnésica ou episódica acompanhado de pontuações mais baixas da memória geral; anomalias detectadas por meio de exames de imagem, presença de biomarcadores específicos e da variante genética ApoE4. A constatação de algumas dessas variáveis ou do conjunto delas pode servir de base para o desenvolvimento de um sistema de pontuação de risco indicativo da probabilidade de evolução do CCL para a DA.
Entre os biomarcadores do líquido cefalorraquidiano utilizados atualmente estão o β-amiloide 42 (CSF42), que indica a deposição de amiloide no cérebro, e o tau/tau fosforilada, que demonstra a lesão neuronal resultante desse processo. Os resultados, em testes específicos, que confirmem a presença de ambos, a de apenas um ou uma discrepância/ambiguidade nesse sentido indicam uma probabilidade respectivamente elevada, intermediária ou baixa de uma relação entre o CCL e a evolução para a DA. Caso apontem uma ausência, terão valor preditivo negativo, o que também pode ser útil8.
Pode-se obter uma confirmação ainda maior do risco caso exames de imagem destinados a avaliar a deposição de amiloide no cérebro e quantificar a extensão da atrofia desse órgão sejam concordantes com esses resultados. A Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET, na sigla em inglês) com o uso de um dos traçadores de imagem recentemente aprovados – florbetapir (18 F) (AMYViD), flutemetamol (18 F) (Vizamyl) ou florbetabeno (18 F) (Neuraceq) – avalia a deposição de amiloide no cérebro. A ressonância magnética volumétrica permite quantificar a diminuição do volume do hipocampo e regiões a ele relacionadas, o que faz desse teste um bom indicador da DA13. Os resultados investigados desses exames demonstram reduções significativas: de cerca de 50% em relação aos participantes do grupo de controle sem registro de CCL13.
Outro método de avaliação de uma perda neuronal significativa é a detecção de uma queda da captação de glicose em uma PET com fluoro-deoxiglicose (FDG-PET). Os lobos temporal e parietal são as áreas em geral mais afetadas. Em um artigo datado de março de 2016, relatou-se sensibilidade de 94% e especificidade de 73%. Esse exame também prevê, com grande correção, uma evolução progressiva da demência com sensibilidade de 91% e não progressiva com especificidade de 75%14,15. Com base em uma combinação de resultados de testes de biomarcadores com exames de imagem, testes cognitivos e a evolução clínica dos sintomas, é possível efetuar uma projeção bastante precisa do eventual desenvolvimento da DA8.
Limitações dos biomarcadores
Com a finalidade de prever a evolução do CCL para a AD, os biomarcadores já foram utilizados em muitos estudos, porém há restrições quanto a seu uso uma vez que se trata de uma tecnologia muito recente. É importante ressaltar que não há uma padronização, entre os laboratórios, quanto aos limiares de significância. Há ainda controvérsias sobre o emprego dos biomarcadores e o objeto das avaliações neles baseadas. Além disso, os testes envolvem custos elevados e podem apresentar resultados incoerentes ou enganosos. Também não se avaliaram, nos estudos multivariados, comparações efetuadas com a finalidade de verificar a precisão. Além disso, foram pouco examinadas tanto as combinações entre biomarcadores quanto a interpretação de resultados indicativos da presença de múltiplos deles, sobretudo em casos de discrepâncias nesse sentido. Por fim, os biomarcadores não são necessariamente específicos para a DA, podendo caracterizar outras doenças neurodegenerativas8.
Substrato da doença dos pequenos vasos na degeneração neuronal e comprometimento cognitivo
É possível que uma das razões pelas quais se encontra β-amiloide em abundância nas doenças neurodegenerativas seja a depuração inadequada das placas amiloides do cérebro. Os pesquisadores debruçam-se sobre a relação entre a patologia vascular e o desenvolvimento do declínio cognitivo. As principais causas da doença dos pequenos vasos cerebrais são a aterosclerose e a angiopatia amiloide9. Nos exames de neuroimagem, visualizam-se, com frequência, eventos isquêmicos como lacunas e lesões da substância branca embora sejam menos observadas lesões hemorrágicas dos vasos sanguíneos, demonstradas por micro-hemorragias intracranianas. É possível que esses pequenos sangramentos sejam o motivo pelo qual os fatores de risco cardíaco, assim como a deposição de amiloide, são fundamentais para o desenvolvimento de doenças cerebrais degenerativas crônicas9. As alterações ateroscleróticas que ocorrem nos vasos sanguíneos com eventos isquêmicos estão associadas alguns dos referidos fatores: hipertensão, tabagismo e diabetes. A patogênese dos eventos hemorrágicos relacionada aos microvasos está ligada ao acúmulo de β-amiloide na parede dessas estruturas, disfunção vascular, com uma consequente inflamação e enfraquecimento das referidas paredes, resultando em hemorragias9. Ambas as alterações vasculares, a isquêmica e a hemorrágica, parecem estar relacionadas à diminuição dos níveis de depuração da proteína amiloide tóxica, à isquemia local e, por fim, ao declínio cognitivo.
Para avaliar a hipótese da relação entre a quantidade de micro-hemorragias e a disfunção cognitiva, o Estudo de Rotterdam (prospectivo, longitudinal e de base populacional) examinou os participantes em busca de alterações parenquimatosas e cognitivas ao longo do tempo. Concluiu-se que uma contagem elevada dos pequenos sangramentos (> 4) está associada a um declínio cognitivo em testes seriados e a um maior risco de demência. Os autores do estudo observaram que permanecem especulativos os mecanismos pelos quais as micro-hemorragias afetam a função cognitiva, no entanto, ao que parece, elas podem servir de biomarcadores de danos vasculares e neurodegenerativos avançados que levam ao declínio cognitivo progressivo. Há incertezas quanto à relação desse fato com a doença vascular causadora de danos isquêmicos locais no tecido cerebral ou com a hipertensão associada à diminuição da depuração de amiloide9.
Os fatores genéticos da da
A presença de mutações genéticas tanto na proteína precursora amiloide (PPA) quanto nas presenilinas 1 e 2 pode levar ao início precoce da doença, aos 65 anos ou menos, com período variável de evolução do CCL para demência. Já os indivíduos homozigotos para o alelo ApoE4 também estão propensos à demência de início tardio, sendo que o fenótipo genético tem sido utilizado na segmentação do risco de desenvolvimento da DA quando se tem CCL10.
Intervenções terapêuticas para modificação da doença
Vêm sendo desenvolvidos em ritmo pouco acelerado os medicamentos destinados a atuar na evolução da DA. O último liberado pela FDA [Food and Drug Administration, ou Agência de Alimentos e Medicamentos], a memantina, para DA moderada a grave, foi lançado em 200311. Não há atualmente nenhum autorizado para tratamento de CCL, e nenhum dos aprovados para a DA oferece claros benefícios no tocante à redução da mortalidade.
No momento, os pesquisadores trabalham em medicamentos para modificar os estágios do processamento de amiloide, eliminando sua produção e deposição. Há estudos em Fase 3 sobre a eficácia da inibição da β-secretase (BACE), que cliva o amiloide em moléculas menores que podem vir a tornar-se oligômeros dessa substância glicoproteica. Também há ensaios clínicos sobre o solanezumab, um anticorpo monoclonal cuja finalidade é limitar a produção de amiloide. Para reduzir a formação de placas, o medicamento liga-se à proteína amiloide, além de auxiliar na depuração dela. Em vista de alguns resultados positivos em casos de DA leve, iniciaram-se novos estudos12.
Outro método com possibilidade de propiciar a modificação da doença é a diminuição da produção de tau. Já o foco da vacina AADvac1, também objeto de estudos clínicos no momento, é a anormalidade da proteína tau, que leva à desestabilização dos microtúbulos. Há ainda ensaios voltados a outro medicamento anti-tau, a Epotilona D, que visa a estabilizar os microtúbulos neuronais, diminuindo a propensão para a formação de emaranhados neurofibrilares em modelos animais.
Um novo anti-inflamatório também em estudos clínicos, o CSP-1103, reduz a inflamação no cérebro resultante da deposição de proteína amiloide, atuando nas células da micróglia.
Outras pesquisas em andamento avaliam o efeito de agentes neuroprotetores, como a insulina, cuja atividade sofre uma queda no cérebro de pacientes com DA. Restaurado a seus níveis normais, esse hormônio parece propiciar uma estabilização e melhoria da cognição de indivíduos com comprometimento cognitivo leve amnéstico (CCLa) e DA de leve a moderada. É administrado por via nasal nesses estudos, o que permite uma rápida absorção pelo sistema nervoso central sem afetar os níveis séricos de glicose ou insulina13. Embora ainda estejam muito no início, essas pesquisas já apresentaram resultados promissores12.
Pontos principais
Nos próximos 30 anos, devido ao acelerado envelhecimento da população, o número de casos de demência deverá aumentar drasticamente em todo o mundo. Com a compreensão cada vez mais aprofundada da doença, está claro que há um longo estágio pré-clínico, antes do efetivo declínio cognitivo.
A causa da DA é o acúmulo anormal das proteínas amiloide e tau. As pesquisas propiciaram maior precisão diagnóstica do CCL e identificaram fatores de risco para a progressão da enfermidade.
As patologias vasculares também têm relevância para o desenvolvimento de doenças neurocognitivas, para cuja prevenção, portanto, a importância da saúde vascular se torna evidente. A modificação dos fatores de risco relacionados às referidas patologias, em particular o tratamento da hipertensão e o abandono do tabagismo, parece desempenhar um papel fundamental no desencadeamento de processos neurodegenerativos que afetam os vasos sanguíneos, inclusive alterações isquêmicas e hemorrágicas.
O desenvolvimento de medicações segue em ritmo lento, e há poucas substâncias cuja eficácia seja o objeto de estudos clínicos. Nesse sentido, registra-se progresso em alguns casos, porém a FDA não aprovou nenhum medicamento para a DA desde 2003, e não há nenhum para o CCL atualmente no mercado. Investigam-se muitas áreas nas quais são plausíveis intervenções destinadas a reduzir as proteínas amiloide e tau no cérebro, no entanto, poucos medicamentos cuja produção poderá se iniciar no curto prazo apresentam resultados promissores.
As seguradoras terão que permanecer atentas para a epidemiologia, fisiopatologia e impacto das possíveis tendências no tratamento dos riscos neurocognitivos, assim como bem informadas nesse sentido. Espera-se que, com a evolução dos testes preditivos e diagnósticos, tanto a estratificação de riscos quanto a experiência de sinistros possam ir-se aprimorando com o passar do tempo.
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